As cosmovisões bíblicas.


A Bíblia hebraica (também chamada de Antigo Testamento) mostra diferentes cosmovisões que não são complementares, mas bem distintas.

Na Torá (Pentateuco, ou Livros da Lei) o mundo é descrito como regido por uma Lei que organiza a vida com muita especificidade. O cumprimento da lei estabelece uma nítida relação de causa e efeito na interação dos homens com a natureza - quem segue os caminhos do Senhor tem uma colheita mais abundante, o gado não perde crias e os gafanhotos não destróem nada. Em suma: quando se obedecem aos mandamentos, bênçãos são derramadas e a desobediência traz maldição. Na Torá, quando se atinge o alvo da lei, as relações humanas são felizes; quando se constata submissão aos preceitos divinos, o caminho para Deus fica desobstruído. Males e sofrimentos; prosperidade e felicidade; ataques e livramentos dependem diretamente da preservação da Lei.

Mas, posteriormente o livro de Jó relata um universo em que bênçãos e maldições resultam de realidades inacessíveis aos humanos. Jó sofre, mas nem ele nem os seus pares têm qualquer noção da trama que acontece nas dimensões espirituais. E todas as especulações sobre o porquê do seu sofrimento estavam erradas. Apesar de Jó ser um homem justo, padece mais do que qualquer outro mortal. A ele restava, tão somente, confiar no caráter de Deus e acreditar que o seu Senhor não era apenas Todo-Poderoso, como benigno.

Em um período mais tardio da cultura judaica, o livro do Eclesiastes concebe o universo totalmente contingente. No Eclesiastes, a vida é uma aventura na qual existem tempos diametralmente opostos entre si: tempo de abraçar e tempo de afastar-se de abraçar; tempo de guerra e tempo de paz, tempo de nascer e tempo de morrer. Neste livro alguns acontecimentos são fortuitos, desconectado de qualquer sentido ou propósito. Quando o Kohelet, ou pregador, afirma que na vida, nem sempre os fortes vencem as batalhas, ele quer ensinar que vivemos em um mundo que nem sempre a justiça prevalece. E não há garantias de que a vontade de Deus se cumprirá (por exemplo, Cristo chorou porque Jerusalém desperdiçou o tempo de sua visitação e a carta aos Hebreus, capítulo 11, afirma que muitos morreram sem ver a promessa).

De acordo com Paulo, a noção de que a lei fora dada para engrenar a vida numa relação estrita de causa e efeito estava equivocada; somos chamados a tocar nossa existência como barcos que singram os mares, tangidos pelo vento do Espírito que sopra sem padrões ou rotas definidas. Portanto, a vida cristã é ordenada para a liberdade e não para se engrenar numa lógica de, se obedecer, consequentemente os resultados serão ''a'', ''b'' ou ''c''.

Tentar organizar a existência a partir do livro de Jó também não adianta. Primeiro, porque este livro poético é, precipuamente, um convite a que nunca se especule sobre o que poderia rolar por trás das cortinas da eternidade. A vida terá percalços, mortes prematuras, acidentes e decepções, mas ninguém pode sequer sugerir o que teria desencadeado as intempéries ou as bênçãos. Aos humanos compete viver em total dependência no caráter de Deus, que sempre busca o bem de todos.

Resta a cosmovisão do Eclesiastes. A vida é uma aventura em que todos são chamados a encarar sem seguranças. Tudo pode acontecer a qualquer um, seja ele um crente devoto ou um agnóstico despreocupado. Cristo preferiu este modelo aos outros. Ele advertiu repetidas vezes que seus discípulos enfrentariam tribulações, seriam como ovelhas no meio de lobos e correriam o risco de morrerem prematuramente (como no caso de Estevão e Tiago).

Em um mundo contingente, onde acidentes e perseguições são plausíveis, é preciso redefinir o que se entende por fé. Fé deixa de significar que é possível agir preventivamente, antecipando-se aos problemas e doenças; deixa de ser uma força dirigida a Deus com poder de induzi-lo a fazer o que estaria indisposto; não visa consertar os mal-feitos que provocaram as doenças.

Na cosmovisão contingencial do Eclesiastes, fé passa a ser uma coragem de acreditar que os valores, princípios e verdades do Evangelho são suficientes para que se enfrente qualquer intempérie que a vida possa trazer.

Jesus afirmou que aqueles que ouvem a sua Palavra e a cumprem, são semelhantes ao homem que edificou sua casa sobre uma rocha e quando sopraram as ventanias nas tempestades, a casa permaneceu. Vale ressaltar que ele não sugeriu que os ventos seriam desviados e as tempestades, abrandadas.

Fé não prioriza modificar as condições da vida, mas os corações. Assim, as pessoas movidas pelo poder do Espírito, inspiradas pela contundência da verdade de Jesus e vivificadas pelo amor de Deus, tornam-se artesãs da história.


Ricardo Gondim
Ricardo Gondim é teólogo brasileiro, presidente nacional da Assembléia de Deus Betesda, presidente do Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos e conferencista. Tem programa de rádio e é colunista de vários veículos de comunicação.

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Via: www.guiame.com.br

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