A nova perspectiva sobre Paulo
Um estudo sobre as ''Obras da Lei'' em Gálatas
RESUMO
Este artigo* versa sobre a maneira como Paulo tem sido interpretado em sua relação com a lei de Moisés desde a época da Reforma até o presente. O autor se detém particularmente na interpretação mais recente adiantada por estudiosos de renome, de que a igreja tem entendido erroneamente essa relação e que o judaísmo do primeiro século não era legalista, mas uma religião da graça. Paulo nunca teria combatido as obras da lei porque eram legalismo, mas sim por serem identificadores culturais de Israel, o que estabelecia uma distinção entre judeus e gentios. O autor examina as pretensões da chamada “nova perspectiva sobre Paulo” a partir do livro de Gálatas, detendo-se no exame da expressão “obras da lei”. Ele conclui que exegeticamente a “nova perspectiva” não pode apoiar-se nessa carta de Paulo e que a visão tradicional de que o apóstolo combate a salvação pelas obras da lei é a que melhor explica os textos em exame.
PALAVRAS-CHAVE
Lei; Legalismo; Judaísmo; Judeus; Fariseus; Paulo; Obras da lei; Graça; Dunn; Sanders; Gálatas.
INTRODUÇÃO
Desde o seu início, o cristianismo debate-se com uma questão crucial: qual é exatamente a posição da lei de Moisés dentro da nova dispensação da graça? Não se trata de uma discussão teológica sem valor prático. Várias alternativas práticas dependem das respostas.1
O debate tem se concentrado historicamente nas cartas de Paulo aos Romanos e aos Gálatas, e mais recentemente na expressão “obras da lei” , que ocorre oito vezes nessas cartas: duas vezes em Romanos (3.20,28) e seis vezes em Gálatas (2.16, três vezes; 3.2,5; 3.10). Em todas essas ocorrências, a expressão ocupa posição central no contexto, e é usada com uma conotação negativa. Paulo emprega-a cinco vezes para negar que a justificação pode ser obtida por intermédio da lei (Rm 3.20,28; Gl 2.16). A expressão também é usada negativamente para se referir aos que estão debaixo da maldição da lei (Gl 3.10).
Não é de admirar, portanto, que dentro da interpretação tradicional do cristianismo histórico as “obras da lei” sempre tenham sido encaradas de forma negativa e entendidas como parte da polêmica de Paulo contra o sistema judaico de salvação por obras e méritos humanos. De acordo com essa interpretação, Paulo usa a expressão “obras da lei” para se referir aos atos de obediência à lei de Moisés realizados pelos judeus da sua época, com a intenção de obter méritos diante de Deus. Paulo rejeita as “obras da lei”, em primeiro lugar, porque nunca foi propósito de Deus que a lei servisse de caminho de salvação. Em segundo lugar, porque o homem é totalmente corrompido e fraco, devido ao pecado, e, portanto, incapaz de cumprir as exigências da lei. Assim, para Paulo, ninguém pode se justificar pelas “obras da lei” simplesmente porque ninguém é capaz de fazer tudo o que a lei exige.2
1. O SURGIMENTO DA “NOVA PERSPECTIVA SOBRE PAULO”
A interpretação tradicional que por muito tempo dominou a área de estudos paulinos começou a ser contestada recentemente, de forma séria, por vários estudiosos.
Veremos a seguir os estudiosos que mais se destacaram como responsáveis pelo surgimento e difusão da “nova perspectiva sobre Paulo”. É importante lembrar que essa não é uma recensão exaustiva da história do surgimento dessa ideia, mas um mapeamento dos seus principais atores.
1.1 E. P. Sanders
Depois dos artigos de Krister Stendhal e Werner Kümmel3, a obra que possivelmente mais tem contribuído para uma mudança de perspectiva sobre o judaísmo e Paulo é o livro de E. P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism4. Partindo de suas pesquisas em material rabínico, Sanders argumenta que o judaísmo da Palestina na época de Jesus e Paulo não era uma religião legalista, preocupada em acumular méritos diante de Deus; antes, era uma religião baseada na graça de Deus revelada nas alianças com Israel, especialmente no Sinai.
Portanto, longe de ser legalista, o fariseu da época de Jesus e de Paulo já se considerava, por nascimento, dentro da graça e da aliança. Ele não praticava as “obras da lei” de forma legalista nem para justificar-se mas simplesmente para manter-se dentro do círculo da aliança. Sanders, então, conclui que o padrão religioso do judaísmo palestino não era “legalismo”, mas “nomismo pactual” (covenantal nomism). Partindo dessas premissas, Sanders afirma em outra obra sua que o assunto discutido em Gálatas “não é se as pessoas podem acumular méritos suficientes para ser absolvidas no juízo; antes, o que se discute é a base sobre a qual os gentios podem ser incluídos no povo de Deus”5.
A tese de Sanders, em que pese a sua influência e impacto, encontrou diversos oponentes e críticos que apontaram as suas diversas e óbvias fraquezas. Primeiro, a distinção que ele faz entre “ser justificado diante de Deus” (que para ele não era a preocupação nem de Paulo nem dos judeus nem de ninguém no século I) e “entrar no povo de Deus” permanece sem uma justificativa clara e sem uma explicação sobre em que essas duas coisas são diferentes.
Segundo, Sanders manipulou as informações recolhidas das fontes rabínicas, pois omitiu as evidências de que o judaísmo palestino era de fato legalista. Terceiro, ele pressupõe que o Judaísmo da Palestina era monolítico, isto é, uma religião cujos ramos e variantes tinham a mesma opinião sobre fé, obras e o pacto – algo que simplesmente não pode ser provado. Por fim, a tese de Sanders acaba pressupondo que esse autor sabe mais sobre o judaísmo do século I do que Jesus e Paulo6. Apesar de tudo, as ideias de Sanders continuam a influenciar até hoje a área de estudos paulinos.
1.2 James Dunn
Um outro autor que tem contribuído em muito para essa “nova perspectiva sobre Paulo” é James Dunn. A sua abordagem sociológica tem recebido vasta aceitação. Para ele, Paulo ataca as “obras da lei” não porque elas expressam algum desejo de alcançar mérito por parte dos judeus, mas porque entende que elas fazem uma distinção entre os judeus, o povo de Deus da antiga dispensação, e os gentios, a quem o evangelho está sendo oferecido. As “obras da lei”, que Paulo identifica como restritas à circuncisão, às leis sobre alimentos puros e impuros (kashrut) e aos dias especiais do calendário judaico, são emblemas que caracterizam o judaísmo e devem ser rejeitadas porque enfatizam a separação entre judeus e não-judeus, a qual Cristo veio abolir7.
Os trabalhos de Sanders e Dunn, entre outros, têm influenciado de forma decisiva o debate atual acerca da perspectiva de Paulo sobre a lei. Percebe-se uma mudança na abordagem de vários estudiosos na direção de uma percepção mais positiva e menos crítica do judaísmo, dos judeus e da lei8. Como consequência, Paulo tem sido visto de forma negativa, como detentor de uma perspectiva distorcida da religião dos seus pais,9 ou mesmo como mal-intencionado em sua maneira de caricaturar e de condenar o judaísmo.10 E o que é ainda mais sério, a polêmica de Paulo contra as “obras da lei” é lançada no vácuo, já que, segundo a “nova perspectiva”, ninguém no primeiro século estava dizendo que a salvação era por obras, muito menos os judeus. Como explicar, então, o ataque consistente de Paulo contra as “obras da lei”, especialmente em Gálatas? Segundo os exegetas da “nova perspectiva”, ou Paulo entendeu mal o judaísmo da sua época (Schoeps), ou então não estamos entendendo bem Paulo (Sanders, Dunn). Ele realmente nunca foi contra as “obras da lei” como um caminho falso de salvação, como Lutero e outros reformadores disseram, e suas críticas à lei, às “obras da lei” e ao judaísmo precisam ser interpretadas de maneira diferente da tradicional.
2. AS “OBRAS DA LEI” EM GÁLATAS
A carta chave de todo esse debate é Gálatas, e é nela que veremos se a tese da “nova perspectiva” pode ser substanciada exegeticamente. Na discussão que se segue, estaremos preocupados apenas com uma questão: Por que motivo Paulo rejeita as “obras da lei”? É porque elas fazem parte do sistema legalista do judaísmo da sua época, sendo incompatíveis com a salvação pela graça, mediante a fé em Cristo (interpretação tradicional)? Ou simplesmente porque fazem distinção entre judeus e gentios (nesse caso, a interpretação tradicional estaria precisando de revisão)? Em nossa pesquisa, estaremos interagindo especialmente com as ideias de James Dunn, considerando que elas têm alcançado proeminência entre as demais linhas da “nova perspectiva”.
2.1 A identidade dos oponentes de Paulo
O significado de “obras da lei” , em Gálatas está essencialmente ligado a algumas questões introdutórias sobre a carta, especialmente o propósito dos oponentes de Paulo na Galácia. Segundo Paulo, eles pregavam “outro evangelho” com a intenção de “perverter o evangelho de Cristo” (1.6,7). Aparentemente, esses pregadores estavam minando a autoridade de Paulo como apóstolo, com o objetivo de resgatar os gálatas de debaixo da sua influência e assim ganhar-lhes a atenção (4.17).
A identidade desses oponentes de Paulo tem sido bastante debatida.11 Aparentemente eles pertenciam à facção farisaica da igreja de Jerusalém, conhecida como “os da circuncisão” (οἱ ἐκ περιτομῆς, At 11.2) devido ao seu ensino enfático sobre a necessidade da circuncisão para a salvação dos gentios (At 11.3; 15.1-5; Gl 2.1-5,11-13; 6.12-13).12 A julgar pelo que Paulo menciona, eles haviam obtido algum sucesso (1.6), pois alguns dos gálatas já estavam guardando os dias santos do calendário judaico (4.9) e outros estavam prestes a se deixar circuncidar (5.2-3). Em resumo, eles estavam abandonando o evangelho pregado por Paulo e adotando um tipo de religião judaico-cristã com fortes tendências legalistas, que requeria as “obras da lei” em acréscimo à fé em Cristo (2.16; 3.10; 4.8-11; 5.2-3).
Alguns estudiosos têm sugerido que, exigindo essas coisas, os “judaizantes” estavam tratando apenas da questão de “como se tomar um herdeiro completo de Abraão” (3.29; 4.1-7,30) ou mesmo propondo um caminho mais excelente de perfeição cristã (3.1-5). Dunn tem mesmo avançado a hipótese de que, de acordo com 2.15-16a, o judaísmo do primeiro século sabia que a salvação era pela fé e não por obras da lei e, portanto, o que estava em jogo na Galácia não era a justificação.13 Entretanto, transparece da carta aos Gálatas que, para Paulo, o que estava prestes a ocorrer com os destinatários era uma questão de vida ou morte. Se eles se submetessem às exigências daqueles pregadores, estariam abandonando o verdadeiro evangelho, renegando a graça de Deus, anulando a obra de Cristo, colocando-se debaixo da maldição da lei e decaindo da graça. Pouca dúvida resta de que, para o apóstolo, o que estava sendo ameaçado era o próprio conceito de justificação. É esse o assunto que o preocupa, mesmo quando aborda a questão da herança de Abraão, incluindo a promessa do Espírito (3.6-9, 29; 3.26 com 4.5-7; 3.4; 3.1-2 com 4.6; Ef 1.13).
2.2 O sentido de “lei” em Gálatas
Esse ponto torna-se ainda mais claro quando observamos em que sentido Paulo usa a palavra “lei” , em sua argumentação contra a mensagem dos seus opositores. Na maioria das 30 vezes em que a usa em Gálatas, ele se refere à lei de Moisés e, dentre essas, 16 vezes a referência é claramente à lei de Moisés como um todo (2.16,19,21; 3.2,5,10,13,17-19; 4.21a; 5.3-4,18; 6.13) e quatro vezes à administração sinaítica do Antigo Testamento (3.23-25; 4.4; 5.14).14 É seguro concluir que Paulo usa o termo “lei” em Gálatas principalmente para referir-se ao corpo de regulamentos dados por Deus a Israel mediante Moisés no Sinai, e como tal ela é abordada pelo apóstolo nessa carta, não em sua função social e nacional como emblema do judaísmo, mas como o conjunto de requisitos legais de Deus em relação aos judeus, os quais os oponentes de Paulo queriam impor aos gentios. Notemos que Paulo menciona a lei apenas no que se refere à relação do homem com Deus (teológica), não quanto à identidade nacional de um povo (sociológica). Assim, é evidente pela forma como Paulo usa , que a expressão “obras da lei” refere-se às obras realizadas em obediência à lei com propósito salvífico.15
É possível que Dunn esteja certo ao afirmar que Paulo, em Gálatas 2.16, tem em mente apenas os preceitos da lei enfatizados pelos seus oponentes, não a lei como um todo. O que estaria em discussão era principalmente a circuncisão (2.3) e as leis cerimoniais de alimentos puros e impuros (2.12). Dunn observa corretamente, em minha opinião, que estes dois preceitos da lei, juntamente com a observância dos dias especiais do calendário judaico (principalmente o sábado), eram as principais características do judaísmo do período do segundo templo, os “emblemas” da religião judaica. Em outras palavras, se perguntassem a qualquer pessoa do primeiro século o que era um judeu, a resposta provavelmente incluiria a menção de todos ou de alguns desses elementos. Não é de admirar, portanto, que os adversários de Paulo estivessem insistindo nesses pontos em sua catequese dos crentes gentílicos da Galácia.
2.3 O sentido de “obras da lei”
Embora essa sugestão de Dunn seja atraente, é mais provável que Paulo esteja usando a expressão “obras da lei” num sentido mais amplo em 2.16, como uma conclusão generalizada. Longenecker, que prefere essa possibilidade, acha que Paulo usa “obras da lei” para sinalizar “todo o complexo legalista de ideias relacionadas com o adquirir do favor divino pelo acúmulo de méritos mediante a observância da Torá”16.
Essa interpretação mais ampla de “obras da lei” em 2.16 é confirmada em 3.10: “Todos quantos são das obras da lei estão debaixo de maldição, porque está escrito: ‘Maldito todo o que não permanece em todas as coisas escritas no livro da lei para fazê-las’”. Ser das “obras da lei” implica em cumprir toda a lei – e isto representa mais que os mandamentos sobre circuncisão, alimentos e dias santos.
Algumas versões na língua inglesa introduziram em 3.10 a palavra “confiam” antes de “obras da lei” (“malditos os que confiam nas obras da lei”), refletindo o sentido óbvio do pensamento de Paulo (NIV, RSV; ver também Phillips). Mas nem todos estão satisfeitos com essa interpretação. Dunn, de forma característica, entende que os que são das “obras da lei” não são necessariamente os legalistas, mas “todos os que restringem a graça e a promessa de Deus sob aspectos nacionalistas”.17 Outros, como Braswell, tomam a expressão num sentido bem mais amplo, como uma referência aos judeus em geral, visto que, para Paulo, eles eram o único povo debaixo da lei de Moisés.18 Essa ideia, entretanto, minimiza a força da expressão “todos quantos” , que aponta para os que são das “obras da lei” como um grupo específico, em contraste com os que são “da fé&rdquo, no v. 9. Portanto, a referência em 3.10 não pode ser aos judeus como um todo, mas aos que dentre eles confiavam numa observância legalista da lei como caminho para a vida.19
Podemos ainda apelar para outro argumento, que fortalece a interpretação tradicional. A citação de Paulo nesse versículo (3.10) é de Deuteronômio 27.26. Paulo segue aqui a Septuaginta, que adiciona ao texto hebraico original “todo o homem” e “todas” antes de “as coisas escritas no livro da lei”.20 Por que Paulo preferiu seguir a Septuaginta nessa citação e não o Texto Massorético? Provavelmente porque a Septuaginta, ao expandir o texto hebraico durante a tradução, dando-lhe uma ênfase mais universal e qualificando a lei como um conjunto de requisitos, serve melhor ao argumento do apóstolo a esta altura. A citação deliberada da Septuaginta, nesse contexto, é mais uma indicação de que, para Paulo, “os que são das obras da lei” eram os que confiavam na obediência à lei de Moisés como o caminho para obter o favor divino.
2.4 “Obras da lei” em contraste
Abordemos o assunto de outra perspectiva. Devido ao caráter polêmico da epístola, Paulo sempre contrasta a expressão “obras da lei” com outras expressões, o que indiretamente nos fornece indicações do seu significado para o apóstolo. Em 2.16, por exemplo, Paulo duas vezes coloca “obras da lei” em paralelismo antitético com “fé em Cristo Jesus” O sentido exato dessa expressão tem sido amplamente debatido em vista da sua sintaxe ambígua. Trata-se de um genitivo subjetivo ou objetivo? A maioria dos exegetas tem optado por um genitivo objetivo, “fé em Jesus Cristo”.21 Entretanto, reconhecemos que mesmo a tradução “fé de Cristo Jesus” não alteraria de forma significativa o argumento de Paulo, quando contrasta a expressão com “obras da lei”. A questão permanece a mesma: não é por praticar as obras requeridas pela lei que alguém é salvo, mas pela dependência de Deus e de Jesus Cristo como Salvador.
Tal contraste entre obras e fé, que também aparece em outros escritos de Paulo (ver Rm 2.20,28; 3.8,24; 4.5; 5.1; Ef 2.8-12; 3.2; Fp 3.9), em Gálatas faz parte do contraste maior que Paulo está fazendo entre a mensagem dos seus adversários e o evangelho genuíno que ele prega. Esse contraste é apresentado de várias formas: carne e Espírito (3.2,5; 5.18-25), Agar e Sara (4.21-31), a aliança feita mediante Moisés e a promessa feita a Abraão (3.15-22). Em todos esses casos, temos a impressão de que Paulo está estabelecendo claramente a diferença fundamental entre as duas mensagens: a tentativa de merecer a absolvição divina pela acumulação de méritos em contraste com a recepção simples dessa absolvição mediante a fé em Cristo Jesus. Como parte desse contraste abrangente, as “obras da lei” são entendidas como uma execução legalista dos requisitos da lei de Moisés.
Outra expressão usada por Paulo em contraste com “obras da lei” é “ouvir com fé duas vezes em 3.1-5). Nessa passagem, Paulo argumenta com os gálatas, com base na experiência dos mesmos no passado e no presente, que a recepção do Espírito e a sua atuação poderosa entre eles decorriam não das “obras da lei”, mas do “ouvir com fé” (3.2,5). A expressão ἐξ ἀκοῆς πίστεως também não é fácil de traduzir, porque mais uma vez temos um genitivo que pode ser tanto subjetivo quanto objetivo e duas palavras que podem comportar várias traduções diferentes (embora relacionadas), ἀκοῆς e πίστεως. Entretanto, independentemente da tradução adotada, o argumento de Paulo permanece invariável. Em última análise, o contraste entre “obras da lei” e “ouvir com fé”, conforme Hays afirma, estabelece ambas como alternativas mutuamente excludentes, que destacam a diferença e a justaposição entre a atividade humana e a atividade divina.22
Em 3.9-10, Paulo coloca “os que são das obras da lei” em correspondência antitética com os que são “da fé” . Essa passagem pertence ao argumento final de Paulo de que Abraão foi justificado pela fé e de que Deus prometeu abençoar todas as nações em sua descendência (3.6-8). Os que são (v. 9) são abençoados com o crente Abraão, ao passo que os que são ἐξ ἔργων νόμου são malditos pela lei. Se pudermos ler aqui o argumento de Paulo em 3.16-18, o contraste entre esses dois grupos toma-se mais claro.23 Os que são “da fé” são justificados como Abraão, sem as “obras da lei”. No caso de Abraão, a lei não havia sido dada ainda. O outro grupo, os das “obras da lei”, justificam-se pela lei de Moisés, que veio 430 anos após Abraão. O contraste é soteriológico. As “obras da lei” aqui, bem como em toda a carta, referem-se a obras realizadas em obediência à lei de Moisés com propósito meritório.
Praticar as “obras da lei” em 2.16 tem ainda um paralelo em 2.21, a “justiça mediante a lei”, que Paulo coloca em irreconciliável oposição aos efeitos da morte de Cristo. O contexto e a semelhança das duas expressões autorizam-nos a estabelecer o paralelo. O resultado é que praticar as “obras da lei”, por inferência, é incompatível com os propósitos da morte de Cristo. Para que a justaposição no v. 21 entre a morte de Cristo e a justiça mediante a lei seja válida, é necessário que esta última seja entendida como atividade humana, padronizada pela lei, desde que a morte de Cristo, como Paulo geralmente indica, é resultado da iniciativa e da atividade de Deus com o objetivo de salvar pecadores (Gl 4.4-5; Ef 1.7-8; Cl 1.19-20; Rm 3.25-26).
CONCLUSÃO
Esperamos que nossa rápida pesquisa tenha demonstrado que o ataque de Paulo às “obras da lei” em Gálatas faz parte da sua polêmica mais geral contra o sistema legalista e inadequado do judaísmo palestino como uma religião de méritos e em direta oposição ao evangelho da graça revelado em Cristo, conforme tradicionalmente se vem afirmando. Embora a ênfase de Dunn na função sociológica da lei nos desafie a ampliar nossa interpretação e incluir também este aspecto na polêmica de Paulo contra as “obras da lei” em Gálatas, sua tese fundamental, bem como muitas teses da “nova perspectiva” sobre o judaísmo e Paulo, não pode ser aceita senão mediante severas restrições e qualificações. Portanto, desde que não conseguimos ser convencidos por elas, resta-nos permanecer com a interpretação tradicional, que, mesmo parecendo antiquada e indefensável para muitos, continua refletindo mais exatamente a intenção de Paulo ao afirmar que a salvação é pela fé, sem as “obras da lei”.
A “nova perspectiva” sobre Paulo continua a influenciar grandemente os estudos paulinos. Inclusive estudiosos evangélicos têm abraçado alguns de seus postulados, embora não cheguem ao ponto de considerar Paulo como equivocado ou inconsistente. Partindo da nossa investigação acima, podemos oferecer uma crítica abordando pelo menos dois pontos.
Primeiro, a “nova perspectiva” acaba atacando a autoridade das Escrituras. Na verdade, é uma “velha perspectiva” sobre as Escrituras. Ela acaba por presumir com relação ao Novo Testamento o mesmo ceticismo histórico que tem marcado os estudos críticos modernos. Ou seja, os escritos do Novo Testamento devem ser tratados como qualquer outro livro de religião, e seus escritores como os demais autores humanos. Admite-se a priori que poderiam ter cometido erros históricos, passado informações falsas e caído em frequentes contradições. Nem todos os que aceitam algumas das ideias da “nova perspectiva” são necessariamente liberais em sua maneira de tratar as Escrituras. Ao fim, porém, temos de escolher entre o quadro que elas nos dão do judaísmo e dos fariseus do século I e aquele reconstruído por Sanders e demais estudiosos que o seguem.
Segundo, a “nova perspectiva” deixa os opositores de Jesus e Paulo sem identificação. Embora o trabalho de demolição feito pelos críticos da “nova perspectiva” seja bem apresentado e desenvolvido, pouco ou nada tem sido erguido sobre as ruínas. A reconstrução que fazem de Jesus, de Paulo e do judaísmo daquela época acaba não convencendo ninguém a não ser os seus proponentes. Não há unanimidade entre eles, por sinal. James Dunn criticou duramente o Jesus reconstruído por Sanders.
O Que Estão Fazendo Com A Minha Igreja
O autor faz uma análise profunda e detalhada desta crise. Os capítulos foram divididos em blocos temáticos, nos quais ele define e discorre sobre as diversas linhas teológicas que se verificam no Brasil, inclusive as mais tradicionais.
fonte/http://www.vidanova.com.br/
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